"Nzambi a tu bane nguzu um kukaiela"

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

PAN-AFRICANISMO SEM BATISMO (Gabriel - U.C.P.A.) 22/8/16

Saudações Africanas!

Falar sobre Pan-Africanismo contemporâneo por essas bandas do atlântico é sempre um desafio e tanto. É de conhecimento geral que somos poucos os indivíduos declaradamente pan-africanistas, contamos com poucas organizações, coletivos e quilombos empenhados na real emancipação dos nossos e, mesmo com nossos esforços constante e incansável nas quebradas, nas cadeias, nas escolas, nos albergues e com moradores de rua, a esmagadora maioria do nosso povo desconhece não só a própria condição enquanto afrodiáspora, como mesmo a menção da palavra pan-africanismo desperta a estranheza da grande maioria acerca de seu significado. Encarar esse cenário com certo otimismo requer não só uma louvável vontade e coragem de pôr a mão na massa e o pé na lama. É preciso também perceber as demonstrações cotidianas da insatisfação manifesta em nosso povo e, a partir daí, elaborar meios de despertar não só a noção de que somos indivíduos pretos – algo que a própria branquitude faz questão de enfatizar -, mas que somos também Africanos e carecemos de atuação organizada tendo como objetivos a libertação, união e solidariedade entre todos os pretos e pretas, tanto no continente-mãe África quanto nas diásporas.
É notório que a música - principalmente, mas não só – vem contribuindo muito e desde sempre para trazer a lume tanto as problemáticas que o nosso povo enfrenta cotidianamente como também elementos importantes para fomentar o pertencimento racial entre os nossos, de tal maneira que ninguém espera que um homem preto de quebrada ouça Negro Drama dos Racionais MC’s do começo ao final com indiferença, e também que a mulher preta, que sobe e desce pelo elevador de serviço todos os dias pra limpar a casa de algum boy, ouça Identidade de Leci Brandão sem marejar os olhos. Mas para além dessas maravilhosas demonstrações facilmente perceptíveis de como muitos de nós somos condicionados, a partir de nossas próprias bases culturais, ao despertar do ‘ser preto’ e de tudo o que isso traz consigo numa sociedade moldada para brancos, há também a busca inconsciente por uma relação harmoniosa e ao mesmo tempo em constante mutação e conflito entre quem somos e o que nos é imposto enquanto padrão cultural e de conduta a ser seguido, e essa conturbada relação é, indubitavelmente, o comportamento padrão entre pretos aqui no Brasil.
O Pastor e escritor Marco Davi de Oliveira em sua obra ‘A Religião Mais Negra do Brasil – por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo?’ nos diz: 
“Alguns aspectos contribuem para a identificação da religiosidade do povo negro no Brasil. O primeiro, que salta aos olhos, é a utilização do corpo como instrumento de culto. Nas igrejas pentecostais, o corpo é usado livremente no momento da adoração, indo de palmas e danças até expressões incomuns, como rastejar no chão, abrir os braços numa posição de vôo, correr sem sair do lugar etc. [..] O segundo aspecto que chama a atenção na liturgia pentecostal e que atrai os negros no Brasil é a musicalidade. Podemos ver – não só no Brasil, mas em todo o mundo – que a musicalidade do negro está relacionada com a vida, o sofrimento, as lutas por libertação e os momentos de nascimento e morte. Essa musicalidade fez diferença, por exemplo, na história sofrida dos negros escravizados no Brasil. Quando, em meio a tanta dor, os negros cantavam e dançavam, demonstravam a resistência que os caracterizaria em todos os continentes.”
Tanto a necessidade de pertencer a um pensamento ou confissão religiosa socialmente tolerável quanto a imposição e manutenção de características indissociáveis e ancestrais do nosso povo nesses ambientes são aqui expostas. O canto e a corporeidade preta, aliados à espiritualidade e religiosidade sem retaliação ou perseguição – sabemos que, em termos de ocidente, o cristianismo é a confissão socialmente desejável e que tal critério é estabelecido pela branquitude -, é muito mais do que qualquer preto pode almejar como refúgio diante dos massacres cotidianos que enfrentamos em diversos âmbitos.  Importante ressaltar que esse fenômeno não se limita ao campo religioso, temos, por exemplo, uma quantidade notável de pretos e pretas aderindo quase que automáticamente a vertentes políticas que lhes confira alguma liberdade de ser enquanto indivíduos pretos e lutadores sociais – outra característica inerente a nós -, denominações tais como o feminismo negro, movimento negro classista e outras vias de pensamento acabam por incorporar os pilares teóricos centrais, esses que não carregam o sufixo ‘negro’.
João Elias, escritor e militante de longa data, nos lembra em sua obra ‘A Impotência da Raça Negra Não Tira Proveito da Fraqueza dos Brancos’:
“A atuação de líderes negros tem sido marcada pelo desejo de conciliação com a sociedade branca, apesar da clara rejeição e sabotagem dos brancos sobre os negros. Vários são os fatores que colaboraram para que a conciliação tomasse o lugar da confrontação. Sem dúvidas um dos mais importantes fatores é o medo. Os brancos sempre estiveram melhor armados que os negros. Embora não haja intimidação declarada, os negros sabem que esta força armada pode ser utilizada para conter suas pretensões. A passeata de 1988 no Rio de Janeiro é um exemplo notável de demonstração de força. Nessa passeata os negros pretendiam repudiar o monumento a Duque de Caxias, notório matador de negros, quando foram contidos por duas longas filas de soldados do exército armados com metralhadoras. Quem sentiu o cano da arma apontado em sua direção sentiu que a situação poderia ter um desfecho trágico.
[..]
Outro fator responsável pelo desarmamento do espírito negro é o seu excessivo espírito festeiro. Os estudiosos da confrontação dizem: “quem se diverte não conspira”. Os mesmos instrumentos utilizados pelo negro para produzir o samba são utilizados pelos brancos para marcar a cadência de desfile militar. Enquanto o negro embriaga-se e dança, o branco marcha disciplinarmente ao lado de seus canhões. 
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Outro grande fator é a atuação de certos negros que se destacam perante alguns políticos brancos usando o discurso racial. Vendem uma influência que não possuem em troca de uma falsa mobilização do negro. 
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Outro fator é a crendice espalhada pelo Brasil de que a discriminação do negro é somente social e não racial.”
Novamente se faz presente a constante busca pela colocação social harmoniosa enquanto povo preto, seja ao dar de ombros para a possibilidade de confronto ao que está posto, seja atuando na política enquanto linha auxiliar da supremacia branca. Novamente, a inadequação se evidencia quando é preciso negar a principal contradição, de raça, para conquistar espaços jamais reservados a quem desempenhar o papel de denunciar o racismo para além dos jargões vazios ‘somos todos humanos e iguais’, e essa inadequação sutil e indiscutivelmente paradoxal se mostra quando o indivíduo elege-se enquanto NEGRO que não trata ou “simplesmente” secundariza a questão de raça... Admite-se e identifica-se enquanto um indivíduo pertencente a um determinado povo sobre o qual recaem determinadas questões e, apesar disso, escolhe por assumir o posicionamento tolerável e que lhe possibilite colocação social tal como aos brancos. Nosso povo, como vemos, é prisioneiro física e intelectualmente, mesmo cotidianamente defronte aos dilemas de raça e manifestando-se em relação a eles, percebendo ou não.
O problema para a branquitude em sua tentativa de impor-se de maneira inconteste e hegemônica começa justamente na inadequação do negro aos seus preceitos de maneira absoluta. Por que inserir ‘negro’ em ‘feminismo’ e em ‘movimento classista marxista-leninista etc’? Por que a musicalidade, a dança e a corporeidade nos cultos pentecostais e não o famigerado e insípido recato característico aos brancos? Por que o pentecostalismo, o feminismo, o marxismo e outras ideologias enquanto escolhas para pretos que optaram por ressignificá-los na tentativa de resgatar algo qual essas ideologias e vias de pensamento, bem como seus genitores teóricos, sequer desconfiam do que se trata, pra começar? 
O que impede a completa assimilação de pretos e pretas por movimentos e idéias oriundos da propaganda da supremacia branca se a maioria dos nossos irmãos e irmãs sequer sabem da existência de alternativas? 
Como é possível, num campo sem concorrência e com ‘natural’ tendência à fusão e assimilação do negro ao norte cultural euro-caucasóide, que esse presságio não se confirme na prática e a cultura dominante não leve à cabo seu processo de aculturação completa dos negros?
Há várias respostas, concordâncias e discordâncias referentes a esses questionamentos, posto está que, além do caráter messiânico, essas ideologias e doutrinas compartilham em comum também o fato de que nenhuma delas foi criada por pretos e tampouco PARA pretos. Essa busca pela adequação inconsciente de negros e negras será sempre vã e às custas de mutilações de valores essenciais a nós enquanto indivíduos com localização cultural e geográfica própria, inerente; essa busca é, sobretudo, a busca pela África que nunca será vista enquanto nossos irmãos permanecerem isolados do que é genuinamente Africano-centrado. É busca desorientada e inconsciente pelo retorno, geográfica e/ou cultural e espiritualmente. 
Temos, então, enquanto povo preso nesse cárcere além-mar, gritos de revolta e denúncia veiculados nas artes em resposta a diversos métodos de opressão racial, como há um anseio silencioso por um modelo de sociedade que nos resguarde a liberdade de agência, crença e pensamento enquanto indivíduos consciente ou inconscientemente africanos. Anseio generalizado, pouco explorado e que só pode ser compreendido por concepções que, obrigatóriamente, tenham a RAÇA como principal paradigma, central e basilar.
Nessa perspectiva, observando e vivendo a carência ontológica, banzo a nível macro, a única cosmovisão e organização política capaz de suprir as demandas do povo preto – declaradas nas artes e literatura ou manifestas em anseios e buscas por adequação nos segmentos da sociedade -, é o Pan-Africanismo. Somente pretos cristãos pan-africanistas são de fato libertos da instituição ‘pentecostalismo’, como no exemplo aqui citado, enquanto ferramenta da supremacia branca para oprimir e perseguir religiões e costumes negro-africanos. Somente pretos pan-africanistas podem defender economia cooperativa – a palavra kiSwahili UJAMAA antecede em muitos séculos qualquer teoria pretensamente progressista européia - e ser de fato anti-imperialista sem incorrer no erro de defender, por tabela ou agenda, intolerância religiosa travestida de materialismo, massacres de povos já flagelados pelo período colonialista travestidos de revoluções e imposições ditatoriais a outros povos e culturas travestidas de ações libertárias clarividentes. Somente no Retorno a liberdade é possível.

Ralph Ellison, escritor e autor de ‘Homem Invisível’, traduz a caminhada de muitos de nós, militantes ou não, antes de obtermos qualquer conhecimento sobre nossas dúvidas mais íntimas:
“Toda a minha vida eu tenho procurando por algo, e em todo lugar onde andei alguém tentou me dizer o que era. Eu aderi às respostas, embora elas muitas vezes caíssem em contradição e até mesmo fossem auto-contraditórias. Eu era ingênuo, eu estava olhando para mim e pedindo a todos os outros, exceto a mim mesmo, respostas a questões que eu, e somente eu, poderia responder. Levei muito tempo e recebi muitos e dolorosos golpes de bumerangue em minhas expectativas para finalmente alcançar uma concepção que todas as pessoas parecem nascer com ela: que não sou ninguém além de mim mesmo.”
Nosso mestre, ancestral e amado líder, Honorável Marcus Mosiah Garvey, nos diz há muito que “um povo sem o conhecimento de sua história, origem e cultura, é como uma árvore sem raízes”, ressaltando, desde aquela época e ainda atual se repetida nos dias de hoje, que a desorientação ontológica sempre existirá enquanto não resgatarmos nossa identidade e valores Africanos violentamente arrancados de nós. A incompletude há de nos ser habitual até que ‘sankofemos’, até que façamos o retorno ao que é nosso e a quem somos.
O otimismo citado inicialmente é pertinente, pois se por um lado a imensa maioria do nosso povo desconhece qualquer referência pan-africanista e não tangencia por si de maneira concisa à sua condição de indivíduo preto pertencente à África e vivente na diáspora, por outro é fato que, mesmo após séculos de constante bombardeio propagandístico da branquitude que não consegue conciliar genocídio e discriminação racial com aculturação e paternalismo epistemológico, nosso povo não se acomodou e nem dá indícios de que irá se curvar completamente, apesar das pontuais exceções e consternadores ‘Pai Tomás’ entre nós.
Esse olhar não indica uma tarefa fácil para nós e para o nosso povo, o grande objetivo é demonstrar que devemos intensificar nossos trabalhos no sentido de dar norte ao nosso povo que, por simples falta de opção visível e por constante repressão social e militar, acaba optando por se esconder nas fileiras brancas para continuar vivendo. E que, salvo desespero da branquitude em tentar nos calar à força, a tendência é que, com a continuidade da nossa luta, a situação melhore com o passar do tempo, que mais e mais pretos e pretas se enxerguem como tal, se identifiquem como fruto de África e, posteriormente, como a própria África, onde quer que estejam.
Não será fácil, mas como diria Mano Brown: ‘... tá com medo de quê? Nunca foi fácil! Junte seus pedaços e desce pra arena! Mas lembre-se... Aconteça o que aconteça... Nada como um dia após o outro dia.’

Nós por nós!

Uhuru!


PAN-AFRICANISMO SEM BATISMO (Gabriel - U.C.P.A.) 22/8/16

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