"Nzambi a tu bane nguzu um kukaiela"

sábado, 15 de julho de 2017


Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), foi uma mulher preta, por definição do viés de análise pan-africano, uma mulher preta-africana, nascida no Brasil no ano de 1910, o seu pai era um homem preto, filho de uma africana que sofreu nas costas o peso da escravização, e a sua mãe era uma italiana branca; entretanto, ela, consciente sobre a ideologia do branqueamento e tentativa do Estado branco de eliminar a chamada "mancha negra", nunca titubeou em relação a cor da sua pele e sua origem racial; segundo ela, a primeira coisa que ouviu, por parte de crianças brancas, quando saiu de casa foram as palavras: “Negrinha! Negrinha!”. Essas palavras impactou, marcou e definiu a vida e a carreira desta irmã, que foi educadora, trabalhou em escolas públicas, ministrando aulas de higiene pessoal e saúde, depois se formou em sociologia e se especializou na área de psicanálise, portanto, ela foi professora de escola pública e universitária, socióloga, cientista política, psicanalista e antropóloga social; seu objeto de estudo por excelência foi as relações raciais e o impacto do racismo na psiquê das pessoas pretas. Foi professora da USP, uma das primeiras professoras universitária negra no Brasil, além de ser professora também na Santa Casa de Misericórdia e na Escola de Sociologia Política. Ela confidenciou que foi buscar na sociologia a origem dos seus sofrimentos, imposto pelo mundo demoníaco do homem branco, para que a partir disso pudesse curar as suas dores pessoais; e nessa busca ela esbarrou em Freud e na psicanalise: o que mudaria a sua vida e a forma de enxergar o racismo. Falar de Virgínia Bicudo nos causa uma dor muito profunda, uma mágoa e o desespero de saber o quanto o nosso povo, sem nação ou terra, sofreu e ainda sofre nessa terra (para nós, nacionalistas pretos, essa parada bate forte pra caralho), pois fazer isso é transitar pelos cruéis labirintos da solidão, do desamparo e do constante sentimento de impotência que é ser preto na diáspora africana, principalmente neste inferno odioso chamado Brasil. Fala de Virgínia Bicudo é também falar do racismo, do epistemicídio (assassinato de um tipo de conhecimento), ou racismo epistêmico (diminuição de um tipo de conhecimento), e, principalmente dimensionar o quão cruel é o mundo branco para os descendentes de africanos: eles nos odeiam e só não nos matam em fornos porque a nossa capacidade de resistência os colocariam e situações complicadas; mas não nos iludamos, eles nos odeiam e o que puderem fazer para nos matar, nos apagar da história ou se apropriar do que criamos eles farão. Virgínia Bicudo foi uma visionária, vanguarda do estudo do povo preto dentro de uma perspectiva de agência e centralidade preta, ela foi a primeira pessoa preta, e mulher, a defender em uma acadêmia uma tese sobre as questões raciais no Brasil. Ela fez isso antes de virar moda com os brancos Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Roger Bastide, e vários outros; porém por força do racismo e do ódio anti-preto a sua obra e contribuição foi por eles e seus discípulos apropriada, excluída, invisibilizada e a sua figura foi jogada ao ostracismo, as vezes mesmo difamada e hostilizada por aqueles brancos que só criaram fama a partir das bases teóricas disponibilizadas pela nossa irmã Virgínia Bicudo. Por exemplo, em 1955, a UNESCO promoveu uma pesquisa no Brasil, sobre as questões raciais, a cargo de Florestan Fernandes e Roger Bastide, ambos brancos, supostamente não racistas, porém a contribuição de Bicudo, pioneira e referência no sobre questões raciais no Brasil, ficou excluída e marginalizada, indicada apenas como leitura complementar. Numa lógica de honestidade e autoridade acadêmica, Bicudo seria a pessoa mais recomendada a dirigir esta pesquisa e relatório. Mas foi rejeitada. Isso por parte de brancos supostamente “amigos dos pretos”. Imagina os brancos que eram inimigos dos pretos. Isso é racismo e genocídio em sua mais completa crueza. É imperativo que resgatemos essa mulher preta, isolada, porém atrelada aos seus irmãos pretos em dor, espírito e compromisso ancestral e atávico. Se hoje, com o advento das facilidades proporcionadas pela internet, não conhecemos a irmã Virgínia Bicudo, mesmo os mais estudados do assunto, imagina em outros tempos, tempos em que não eramos alfabetizados, imagina a solidão de uma pessoa preta que pensou a mente de um povo que ela sabia que não ia ter acesso aos seus escritos e portanto não teriam as condições necessárias para se curar das dores como ela quase conseguiu. Quase conseguiu, porque, mesmo após o amadurecimento intelectual, ela pensou em cometer suicídio, mais de uma vez, devido a pressão do mundo branco que chegou ao ponto nefasto de espalhar panfletos pelas ruas difamando-a. Parece surreal, parece mentira, mas não é, foi real; imagina a cena: psicanalistas brancos distribuindo panfletos pelas ruas de São Paulo difamando uma irmã preta que foi pioneira na psicanalisem, uma irmã que criou as bases para expansão e difusão da psicanálise do Brasil, chamavam-na de charlatã e falsária! Quantos dos nossos não cometeram suicídio por não suportar o ódio destilado pela dissimulação agressiva do mal? A dissertação de mestrado dela, apresentada na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, com o título de Estudo de Atitudes Raciais de pretos e mulatos em São Paulo, em 1945, foi pioneira e revolucionária e, já na época, demoliu não somente o mito da democracia racial brasileira, mas principalmente o falso discurso dos sociólogos marxistas e funcionalistas de que o chamado problema do negro era social, de classe, pois ela, estudando o caso de 31 pessoas, além de algumas famílias de classe média, que tinham seus filhos em escolas públicas, constatou que mesmo ocorrendo mobilidade social as pessoas pretas não deixavam de ser hostilizadas pelas pessoas brancas, as vezes com situações econômicas mas adversas. Antes de Frantz Fanon, e isso é um dado revelador, Virgínia Bicudo já defendia a tese que o racismo era uma patologia que causava graves danos mentais nas pessoas negras, que, fragilizadas pelas agressões raciais, não conseguiam desenvolver todo o seu potencial humano. Bem, paremos por aqui, seja como for, principalmente para esses jovens pretos que estão chegando, torna-se necessário o resgate dos nossos, o resgate dessa nossa irmã preta, neta de uma africana escravizada, alguém que viveu isolada dos seus e cercada pelo demônio, que a todo momento tentou derrubá-la e quando não conseguiu, contrariados pela força da inteligência e inovação desta africana, tentou embranquecê-la: chegando a colocar nos registros oficiais “Virgínia Bicudo, socióloga e psicanalista de cor branca”. Hoje, a obra dela está sendo estudada e sua vida escrafunchada nas universidades de psicologia e sociologia, porém apenas nas mãos de pessoas brancas.

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